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A BUSCA POR UM BOM ROTEIRO

POR UM BOM ROTEIRO

Todos gostam de boas histórias, todo mundo diz que gosta de ler ou assistir a uma boa história. Mas, afinal, o que é uma boa história?

Quando se fala de quadrinhos (seja mangá ou qualquer outro tipo), os desenhos chamam a atenção em um primeiro momento, mas é o roteiro que vai sustentar a leitura. Já em uma animação ou um live-action, ou seja, uma obra audiovisual, sempre vai contar a experiência sensorial completa, com a direção, a trilha sonora, os valores de produção na ambientação do cenário e o talento dos atores (de atuação física ou somente vocal). É o conjunto da obra que vai determinar o sucesso ou não do trabalho, mas sem uma boa história, bem como sem bons personagens, tudo acaba desandando.

Aqui, é importante dissociar os elementos que formam uma história, ou seu roteiro. Antes de todos os elementos de um enredo, temos os personagens.

Stan Lee (1922~2018), coautor de boa parte do Universo Marvel clássico, dizia que uma boa história se escreve sozinha. Já Kazuo Koike (1936~2019), escritor do aclamado mangá Lobo Solitário, foi também professor de mangá, e sempre dizia que o elemento no qual cada autor mais devia se esforçar era na criação dos personagens.

Stan Lee e John Romita

A visão de Stan Lee e Koike na verdade convergem para o mesmo ponto. Quando uma história “se escreve sozinha”? Quando os elementos que compõem a trama – seus personagens e seu pano de fundo – são bem estruturados. Aí, qualquer tema que você jogue no cenário da HQ irá puxar um desenvolvimento lógico, baseado nas interações dos personagens, que devem ser coerentes. Isso não é ser previsível ou cair em clichês, mas sim, respeitar a inteligência do público.
Personagens bem estruturados têm um passado, uma personalidade, motivações e aspirações. Bons personagens passam por provações, têm dúvidas, possuem camadas de personalidade. Podem tanto mudar seus pontos de vista quanto reafirmá-los no decorrer de suas trajetórias, mas sempre são guiados por seus valores pessoais e precisam de coerência para serem críveis.
Sobre isso, uma reclamação recorrente dos fãs perante adaptações, continuações e reboots nos últimos anos tem sido a mudança dos heróis, em um processo de desconstrução de seus aspectos mais elevados. Desconsiderar, diminuir ou deturpar características de personagens consagrados tendo em vista ideias políticas sempre é complicado, e acaba sendo um problema moral antes de ser um problema técnico de muitos roteiristas atuais.

A estrutura básica de uma história de aventura é, basicamente, a chamada “jornada do herói”, que consiste em uma pessoa comum sendo retirada de seu habitat e sua zona de conforto para cumprir uma grande missão. Isso irá levá-lo a muitas provações e sacrifícios, até a vitória final. A jornada será marcada por perdas, dores, aprendizado e amadurecimento até que ele alcance a plenitude de sua força e a direcione para um objetivo nobre.

Livro de Joseph Campbell que explica a jornada do herói

Homem-Aranha e Batman são dois exemplos de jornada do herói, ainda que sejam personagens bastante diferentes entre si. Muitas histórias lidam com esse tema, e é a grande fórmula que orienta o ato de contar grandes narrativas. As variações são inúmeras e, quando bem exploradas, criam um senso de envolvimento do leitor ou espectador com a jornada do herói principal.

Para surpreender o público, muitos escritores e roteiristas lançam mão do chamado “plot twist”, que é uma guinada ou mudança brusca nos rumos de uma história. Um dos grandes casos de plot twist que empolgou milhões de espectadores foi o filme O Sexto Sentido, de M. Night Shyamalan, que faria desse recurso uma marca de sua carreira. Quando o autor joga pistas discretas e ainda assim consegue surpreender a maior parte do público, a história geralmente se torna empolgante. Quando é mal conduzido, o recurso pode colocar tudo a perder.

Em sagas com grandes batalhas, o recurso “Deus ex machina”, ou o “Deus saído da máquina” é um termo que define uma solução quase mágica para um combate onde tudo parece perdido para os heróis do filme. O termo surge quando a reviravolta a favor do herói é um recurso “tirado da cartola”, como um truque mágico mesmo, podendo ser um poder extra, um aliado surpresa ou algo do tipo. É um outro recurso que, bem utilizado, pode empolgar o público. Do contrário, pode causar irritação.

Uma variação interessante de jornada do herói é o que podemos chamar de “jornada de redenção”, onde temos um personagem que foi bom, grandioso ou heroico no passado; mas mergulhou no vício, na amargura e se perdeu na vida. Aí, algo acontece e ele começa a sair da sarjeta, recuperando o que havia de bom nele. Variações podem trazer um sabor a mais, podem trazer surpresas e questionamentos. No entanto, subverter isso deve ser feito com muita parcimônia. Um exemplo de inversão dessa jornada do herói foi visto na trilogia clássica de Star Wars.

Primeiro, o público conheceu o vilão Darth Vader e ficou sabendo que, no passado, ele foi um Cavaleiro Jedi. Na segunda trilogia, o público pôde acompanhar sua história desde o começo, onde ele tem uma jornada do herói, para depois ser corrompido e sucumbir a seus sentimentos sombrios em Star Wars III. Seu final (visto em Star Wars VI), no entanto, teve uma redenção, coroando uma dolorosa jornada que emocionou diferentes gerações de fãs.

Star Wars Luke e Darth Wader

Em tempos de desconstrução, quebra de paradigmas e um predomínio das mensagens de agendas ideológicas, a fórmula tem sido subvertida ou desmoralizada, e isso não acontece somente nos EUA.

No reboot de 2022 Kamen Rider BLACK SUN, a trama apresenta Issamu Minami como um herói decaído que vive como mercenário, e que tem uma jornada de redenção, de recuperação de um senso de justiça e desejo de salvar a humanidade da ameaça Gorgom.

Dividindo o protagonismo, a menina Aoi, uma personagem que tem uma dolorosa jornada, saindo de um idealismo inocente para uma sangrenta batalha pela vida. Ela passa por grandes tragédias após ser traída por um amigo, mas perdoa ele de imediato depois que o rapaz simplesmente pede desculpas, como se a traição não tivesse tido consequências graves para ela.

No fim, ela abraça a violência, a vingança e o sentimento revolucionário, montando um grupo terrorista com crianças, que são vistas sendo treinadas para cometer assassinatos a faca e fabricar bombas caseiras. E o herói da série, após recuperar seu espírito lutador e lutar contra o grande mal apresentado, acaba resolvendo ingerir um tipo de droga produzida pelo inimigo, chamada Heat Heaven, a fim de curar ferimentos e se fortalecer. Ele se recusava a ingerir a tal droga milagrosa, por saber que era feita com carne humana. Finalmente, ele recorre à droga para recuperar as forças, abraçando a ideia de que “o fim justifica os meios”.

E o grande vilão da série, o cruel manipulador de eventos, acaba tendo uma morte brusca e patética, sem nenhum senso de catarse ao público depois de todas as atrocidades que cometeu. Quando coisas assim acontecem sem que o roteirista consiga dar um andamento lógico coerente e satisfatório, com um desenvolvimento emocional falho, a história soa inconsistente, forçada. Claro que, para a parcela do público que só quer visual, ação e violência, mais uma dose de fan service, isso não importa muito.

Quebrar paradigmas é bom, surpreender o público também, mas não a custo de situações incoerentes, furos de roteiro e mensagens políticas panfletárias; ou seja, que não permitem um vislumbre de virtude no outro lado, sempre demonizado por um discurso orientado por uma agenda política. É possível criar obras de conteúdo politizado que desperte reflexões, sem ter que recorrer ao discurso doutrinário que mostra somente um lado das coisas. Aliás, é isso o que faz uma obra ser considerada panfletária: A demonização do outro lado como sendo um mal absoluto, sem nuances.

Kamen Rider Black Sun 2022

No campo das histórias de romance, sejam de apelo cômico ou dramático, a fórmula “boy-meets-girl” pode se desenvolver de muitas formas, sempre com encontros, desencontros, brigas ou muitos mal-entendidos pelo caminho. Tudo para o previsível final, onde o casal finalmente se acerta. Nesse caso, a diversão do público fica nos percalços enfrentados, até um final satisfatório.

A comédia de ação Ranma ½ traz uma variação desse tema, com o casal central passando por muitas confusões ao longo da saga, que é recheada de combates de artes marciais e muitas situações hilárias envolvendo os personagens, todos com características marcantes e engraçadas. Mesmo em histórias que não tenham foco no romance, a fórmula sempre pode ser um tempero a mais em qualquer história, seja em um drama, comédia ou aventura.

O grande sucesso recente de SPY x FAMILY, apesar da premissa de ser uma aventura de espionagem, se apoia na interação divertida entre os personagens da família Forger, como uma boa sitcom, ou comédia de situações. O cotidiano familiar e as interações dos personagens em outros ambientes acabam gerando tanto interesse quanto as missões. O próprio encontro do casal Yor e Loid, inclusive, é um típico “boy-meets-girl”, onde se apaixonam à primeira vista, ainda que ele minta para si próprio sobre estar apenas seguindo um plano. Os segredos entre eles, as cenas de ação explosiva e a constante quebra de expectativa para gerar cenas de humor provaram que é possível construir grandes narrativas sem a tradicional jornada do herói, que ainda se faz presente. Afinal, na série é mostrado que o agente Twilight fora uma criança sobrevivente de guerra, que decidiu lutar para impedir outras guerras, tornando-se um habilidoso espião a serviço de seu país.

As fórmulas não se tornaram paradigmas por acaso, mas porque funcionam quando feitas de modo criativo e coerente. Se isso não fosse verdade, não teríamos, vindos do Japão, grandes sucessos com obras criadas há menos de 10 anos, como Demon Slayer ~ Kimetsu no Yaiba, por exemplo.

Demon Slayer Netflix

Uma clássica jornada do herói na figura do protagonista Tanjiro, que possui uma personalidade forte e é cercado de personagens carismáticos. Somente uma animação de qualidade ou um visual estiloso não justificam o tamanho do sucesso que a obra obteve, que não é uma história sobre vingança, como muitos erroneamente classificaram ao ver o início. Tanjiro não luta pensando em se vingar, sua preocupação maior é restaurar a humanidade de sua irmã Nezuko, bem como impedir que outras famílias sofram o que ele sofreu. E é capaz de, misericordiosamente, orar por demônios que destruiu, sabendo que eles um dia também foram humanos.
Enquanto nos EUA, o que mais tem surgido são obras derivadas de franquias surgidas no século passado, o Japão tem muitas obras de destaque surgidas nos últimos 10 ou 20 anos. Geralmente, são clássicas jornadas de herói, temperadas com altruísmo, amizade e autossacrifício.

A questão do esforço é muito importante para o as narrativas japonesas, e isso é um dos elementos que despertam admiração nos personagens, que se tornam modelos de virtude e conduta.

ANIMES Japoneses imagem internet

Em obras americanas, ficou muito comum a figura da heroína que mal treinou porque “nasceu pronta” e é superior em tudo aos homens. É a definição perfeita da personagem “Mary Sue”, que invadiu a cultura ocidental com força. Enquanto isso, no Japão, os heróis sangram treinando até o limite, honrando tradições e mantendo o foco no que é mais importante. Talvez isso não seja tão forte hoje quanto já foi no passado, mas ainda é um elemento importante.

Mary Sues Imagem da internet

O Japão ainda não se rendeu à lacração e, apesar do progressismo generalizado, lá ainda se produzem muitas histórias que contam, de forma bem construída, sagas de personagens com grandes jornadas e missões a cumprir. Por isso os mangás têm vendido mais que os quadrinhos de super-heróis em todo o mundo, incluindo nos EUA; enquanto o animê se tornou o desenho animado mais popular entre todas as camadas da população mundial, seja nas américas, na Europa, Ásia, Oceania ou mesmo na África.

Em tempos de heróis sombrios, muito cinismo e desrespeito a valores outrora importantes, ainda existem obras que oferecem entretenimento e inspiração sem se perder em discursos panfletários.

Uma boa história, afinal, é aquela que diverte, inspira e respeita a inteligência do público.

– Alexandre Nagado é escritor e autor do Blog Sushi POP

(www.blogsushipop.com)

 

 

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