FINAL FANTASY XIV: O MOMENTO MAIS PROFUNDO DA FICÇÃO

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Este é um artigo que eu penso em escrever há muito tempo. Final Fantasy XIV é, ao lado de Senhor dos Anéis, a obra de entretenimento que mais mexeu comigo. Com o anúncio de Final Fantasy XIV finalmente chegando às plataformas Xbox e de sua nova expansão, Dawntrail, não há momento melhor para falar sobre isso do que agora.

Este é um texto intimista, e sobre um jogo difícil de recomendar. Final Fantasy XIV talvez seja meu game favorito de todos os tempos. Mas ele também é um MMORPG com uma grande curva de aprendizado, e para você chegar no ponto da história que irei contar e comentar, é necessário de você um investimento de cerca de 400 horas. Sim, de verdade. E olha que estou sendo generoso.

O design dos personagens também não ajuda e até hoje é minha maior crítica. De primeira vista é difícil imaginar que um jogo cheio de meninas-gatinho de cabelo rosa e garotos-coelhinho pode trazer qualquer coisa de valor à mesa.

Mas vale a pena para quem tiver tempo, acredite.

Apesar de FFXIV ser um RPG em multiplayer, ele possui uma história única e linear que atravessa o jogo base e quatro expansões. O que me faz me sentir um tanto mal. Encarando seu enredo com a importância que eu o encaro, não sinto que é justo eu apreciá-lo sozinho em uma torre de marfim. Meu intuito é resumir sem muitos detalhes o acontecimento que tanto me impactou, assim como minha interpretação sobre ele e como ela conflita com a percepção da maioria dos outros jogadores.

Se você não vê como uma possibilidade colocar tantas horas de sua vida em um só jogo, espero que aproveite este texto. Caso contrário, evite os spoilers e volte para ler isto aqui quando terminar sua aventura por Eorzea.

Daqui uns dias postarei um guia de iniciantes para o game, então não esqueça de conferir no site.

O NASCIMENTO DO NIHILISMO

Em cada expansão de FFXIV somos apresentados a histórias diferentes, mas desde o início há uma subtrama misteriosa se desenvolvendo. Apenas na última delas, Endwalker, descobrimos a verdade e entendemos a raíz de todo o problema que aflinge este mundo. Endwalker encerra toda essa trama que teve início no jogo base de 2010. O jogo continuará recebendo conteúdo, mas agora começando a contar toda uma nova aventura.

O que narrarei a seguir são momentos cruciais da história, mas tenha em mente que estou propositadamente ignorando 99% dos conflitos, dramas e personagens. Meu foco é apenas um. Meteion.

Incontáveis anos antes do início de nossa jornada, existiam os Anciões. Uma civilização extremamente poderosa que possuía o poder de criar vida. Eles eram inteligentes e organizados, tendo todo um sistema burocrático para criação de novos seres que habitariam aquele planeta.

Um dos responsáveis por isso era Hermes. Mas dentro de Hermes crescia um tormento depressivo. Para que eles criavam novas vidas? Era justo quando seus superiores “cancelavam” uma de suas criações, condenando seres inocentes à não-existência?

Desesperado porém astuto, Hermes criou em segredo as Meteias: um grupo de irmãs com aparência de harpias que conseguiam se comunicar entre si telepaticamente, não importa a distância.

Hermes então mandou as irmãs viajarem pelas estrelas, para encontrar diferentes planetas e questionar seus habitantes com uma simples pergunta: “qual é a razão de viver que vocês descobriram?”

Enquanto isso, uma das irmãs foi ordenada a ficar ao lado de Hermes, com o propósito de lhe dizer as respostas que suas irmãs iriam encontrar. Meteion era seu nome.

Um dia, Meteion proclama que suas irmãs finalmente estão entrando em contato com sua mente. Mas elas não encontraram respostas.

Eis o que as irmãs reportaram:

Realizamos nossa pesquisa conforme suas instruções. Pesquisamos registros históricos. Comungamos com os espíritos dos falecidos.

Ouvimos os testamentos finais dos moribundos. Recebemos seus corações sombrios em nossos próprios.

Uma raça se esforçou para criar um mundo sem animosidade. Eles renunciaram aos relacionamentos para evitar conflitos interpessoais e, ao fazê-lo, provocaram o colapso da sociedade.

Uma raça renunciou à guerra e se dedicou ao enriquecimento de seu povo. Eles foram conquistados. Embora tenham destruído o inimigo em represália, não puderam recuperar sua antiga glória.

Uma raça concluiu que o tempo finito era a raiz de todos os males. Aspirando a romper suas algemas, eles partiram em busca do infinito. Eles descobriram que nada é infinito e que nem o tempo nem a morte podem ser enganados. Desiludidos, desistiram do futuro e de si mesmos.

Uma raça descartou todas as coisas que davam origem à tristeza, esperando ter apenas alegria. Eles descobriram que a alegria perdia seu sabor na ausência da tristeza e perderam a vontade de viver.

Embora em planetas diferentes, essas pessoas compartilhavam uma crença. A crença de que eles fizeram o seu melhor. Que eles tentaram cumprir seu potencial, a cada passo e sucesso. No curso do qual eles aprenderam a verdade.

Que eles nunca estariam livres do medo e da tristeza, da raiva e do desespero – da solidão – enquanto ainda vivessem. Mesmo agora suas almas clamam pelo esquecimento. E para esta canção de angústia, eu empresto minha voz! Nós emprestamos nossa voz!

A DESTRUIÇÃO É IMINENTE

Determinadas em acabar com as dores da vida, decidiram que o meio é acabar com a vida em sí. As harpias se reúnem na região mais distante do universo e em um único ser. De lá, ecoariam uma canção tão angustiante que transformaria todos os seres vivos em monstros movidos pelo desespero, aniquilando uns aos outros.

E assim o fizeram.

Existe um motivo pelo qual o planeta originário dos Anciões, no qual o jogo se passa, sobreviveu a este ataque musical. Ele foi protegido. Mas os “quem” e “como” disso são respostas imensas e que fogem do meu objetivo com este artigo – apesar de serem histórias fascinantes e que movem a maior parte dos eventos desse mundo.

O que nos importa para este texto é que, em certo momento, esta proteção é desfeita e o protagonista do jogo (você) e seu grupo de amigos (NPCs) decidem viajar ao fim do universo e derrotar esta ameaça de uma vez por todas.

Após muito trabalho, a oportunidade de enfrentar as irmãs aparece. Ou melhor, o amalgama delas, chamada agora de Endsinger. A figura de uma mulher de bela face, com grandes asas, mas sem corpo. Intecto, mas com um vazio no lugar das emoções, seu pragmatismo pessimista desfazendo todo resto.

Endsinger se mostra uma ameaça muito maior do que qualquer outra, quase aniquilando todos os colegas do protagonista. Para salvá-los, ele usa um teleporte que seria uma medida de emergência para teleportá-los para uma nave aos redores, em segurança. Agora é a hora.


A BATALHA É MAIS DO QUE PELA SOBREVIVÊNCIA

No jogo, a luta contra a Endsinger é como a da maioria dos outros chefes – você se une a outros jogadores (que a lore inteligentemente justifica como outras versões sua de outras realidades) e precisa cumprir seu papel, seja atacar, tankar ou dar suporte ao time. Não é a batalha mecanicamente mais interessante do game (que tem muitas, e muitas excelentes) mas é competente.

Leve em consideração todo o investimento na história e nos personagens que você teve com o jogo até este momento, ok? Eu pessoalmente já tinha depositado muito mais de mil horas, por exemplo. Esta é a luta mais importante de todas, a que está fechando um arco narrativo de mais de uma década em desenvolvimento. E estava fechando com chave de ouro. Impossível não estar emocionado.

Enquanto a luta acontece, a Endsinger constantemente o provoca. Apresenta a tentação da desistencia, de ver as coisas como ela vê. “Não existe objetivo para a vida, não existe Deus”. “Você jamais alcançará a salvação que está buscando”.

Inesperadamente, na metade da batalha, tudo para. Todos os jogadores perdem o controle de seus personagens e são obrigados a assistir um golpe da vilã, uma onda de nergia sombria tão grande que engloba a tudo, sobrando apenas escuridão.

É isso, a Endsinger ganhou. Por segundos você encara uma tela preta em silêncio.

E então acontece.

Uma cena surge de seus colegas na nave. Joelhos no chão. Mãos fechadas em frente ao rosto. Orando. Não importa o insistente monólogo que esta criatura que tudo estudou e de que tudo sabe. Um que repete que nada importa. Um que afirma que a vida é sofrimento e que sofrimento é desperdício. Que o fim é apenas o fim.

Eles rezam.

E é essa oração que desfaz o golpe que o impedia de continuar, iluminando o campo de batalha. Com arma em mãos novamente, a luta continua de onde parou. Neste momento, enquanto volta a jogar, você escuta seus colegas enfrentando as vontades da Endsinger, frases de que nem eles e nem VOCÊ jamais desistirão. É um tanto brega, mas não importa. É uma cafonice típica de animes mas que vale a pena. Para agraciar ainda mais o momento, neste instante a música de fundo se abre para uma cantora feminina com voz angelical, um trecho da música tema dessa expansão que nunca falha em me causar arrepios. É perfeito. O momento mais catártico que eu já tive com qualquer mídia.

Com a luta ganha, Endsinger se desfaz, mas Meteion sobrevive. Distante da influência de suas irmãs, ela volta a ser apenas uma garotinha. Entendendo que agora ela não tem mais muito tempo de vida e profundamente arrependida pelo o que a entidade Endsinger causou, ela faz um último apelo ao herói, que ele permita que ela possa cantar uma última canção, mas desta vez uma canção sobre a esperança que ela agora descobriu que existe.

(Por curiosidade, muitas das músicas cantadas de FFXIV não só obras primas por si só como também possuem letras que apenas fazem sentido uma vez que o jogo é terminado. Aquela música angelical que citei lá em cima? Fica implícito que esta é a canção cantada por Meteion, expandindo ainda mais seu significado.)

Não sei quem são esses jogadores, imagem meramente ilustrativa vinda do Google

HEDONISMO VERSUS ESPIRITUALISMO

Existem saídas para o nihilismo, o sentimento de completo vazio de propósito. E é isso que eu vejo o final deste jogo tratar, desenvolvendo interpretações tão diferentes.

Ao presenciar tudo que relatei, eu entendi de imediato que o jogo apresentava a saída espiritual para o nihilismo. O momento em que eu vi aquelas pessoas rezando ressoou profundamente em mim porque é nisso que eu particularmente acredito. O propósito é Deus. A fé inabalável mesmo quando se enfrentendo a personificação da inexistência. Através disso, claro, podemos sim aproveitar todos os momentos bons providos por Ele, mas com a força necessária  para superar os difíceis também.

Contrastando com minha visão, a grande maioria dos jogadores parece acreditar que a saída do nihilismo apresentada é a de que viver vale a pena para que possam ser apreciados os bons momentos. Em defesa dessas pessoas, apesar do roteiro literalmente expor o momento da oração claramente, sua abordagem sobre o espiritualismo se torna mais sutil a partir dalí. O que não vejo como um problema. Mas a divisão de interpretações que isto gerou é muito curiosa.

Viver para apenas cultivar os momentos bons apesar dos ruins nada mais é do que um hedonismo leve, e que não realmente rebate os pontos levantados pela Endsinger, pelo nihilismo. Hedonismo não se opõe à crença de que a vida não tem um propósito maior – pois nesta lógica, a busca pela felicidade nada mais seria do que uma auto-imposta distração.

Olha eu ai. Parecido, né?

Eu li e ainda leio inúmeros comentários sobre o fim de Endwalker. NUNCA eu vi alguém citar o momento da oração. E eu serei sincero aqui a ponto de talvez ser criticado apenas como um herético em histeria. É de minha percepção que existem obras que são tão influenciadas pelo divino que é possível você sentir isso nelas. Isso acontece com algumas músicas eruditas, por exemplo, adágios principalmente. São pouquíssimos casos, mas eles acontecem na arte. Já nos games, eu senti isso pela primeira e única vez com FFXIV, e foi no momento que por sua vez me levou a escrever tudo isso.  Pode parecer estranho alguém considerar que algo tão belo possa existir em um RPG online que alguns jogadores utilizam como ambiente virtual de cyber-suruba, mas fazer o que?

Mesmo que eu discorde da conclusão dessa grande maioria de jogadores, tenho certeza que eles também tiveram bons momentos com a história. Praticamente todos os streamers do game choraram em vídeo em algum ponto da conclusão do jogo – não que isso deva ser  levado como mérito. Pessoalmente acho um tanto patético e digno de receber piadinhas quem se presta ao papelão de se mostrar tão vulnerável na frente de todos. Por isso que eu jamais assumirei que eu derramei lágrimas. Nunca mesmo.

O que me espanta de verdade é que para a maioria desses usuários, é como se a cena da oração não existisse. Eles se emocionam em cenas de sacrifício, de arrependimento, etc. Mas nunca naquela que tão profundamente me pegou no coração. Até aposto que os mais ideológicos dentre eles tirariam sarro deste artigo, como se a leitura de que a obra apresenta o divino como salvação é absurda ou fanática, apesar deles terem visto literalmente a mesma cena da reza que eu. É bem estranho. Mas estou feliz em finalmente poder comentar sobre a grandiosidade dessa obra.

AS OUTRAS QUESTÕES

Por ser um jogo que exige pagamento mensal, Final Fantasy XIV recebe updates constantes dentre o período de lançamento de suas expansões. Alguns deles dão continuidade para história em forma de interlúdio. Não voltei a jogar FFXIV após o lançamento de Endwalker, então não sei o que acontece depois do fim que assisti. O que sei, no entanto, é que de alguma forma o enredo aborda os 12 deuses da lore deste universo. Por não ter jogado, não faço ideia se em algum momento é citado algo que possa contrariar a perspectiva que tenho sobre o momento do qual tanto comentei aqui. Acredito que não. Mas, se for o caso, não me importo. A experiência já aconteceu.

Dito isso, o mundo de Final Fantasy XIV é repleto de histórias emocionantes e valorosas, e esta é apenas uma delas. Apesar de sentir que é a mais importante, gostaria muito de comentar sobre outras – e espero fazer isso no futuro, mesmo que em um formato de artigo diferente.

Por exemplo, um dos vilões principais da saga é considerado por muitos como o melhor vilão já escrito na ficção e ele sequer foi citado aqui. O pior é que eu concordo com essa afirmação.O problema é que existem muitos fãs desse personagem, um efeito à lá apologistas de Thanos ou de Jaime Lannister. A adoração por esse psicopata chegou à um nível tão bizarro que os roteiristas parece que se sentiram na obrigação moral de fazer um meta-comentário sobre isso dentro do game, para alertar a esses jogadores que não é legal cultuar um personagem genocida daquela forma. Maluquisse.

Outra história que eu gostaria muito de comentar é a de Hydaelyn, que desde o princípio é a guia do protagonista. Um ser celestial que ao final mostra traços paralelos à figuras religiosas, tratada de forma respeitosa, e que estrela alguns dos momentos mais emocionantes dessa obra.

Mas por enquanto é só.

Engraçado. Eu tenho uma conexão tão forte com este game e em específico sobre a batalha contra a Endsinger que agora eu estou começando a me questionar se outras pessoas conseguem ver o mesmo que eu. Apenas lendo este texto, será que tudo isso parece nada muito além do que já existe em tantas obras de ficção por aí?

Então, se você leu até aqui, deixe sua opinião nos comentários por favor. Estou curioso. E obrigado pela leitura.

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