Se Liga Nerd

Malevolent Spirits

Por Patrick Raymundo de Moraes do site http://outrospapos.com

Hyouma é de uma família (os Kunato) que tem como missão lidar com tsukumogamis. Quando jovem, ele presenciou um desses seres místicos matar seus dois irmãos. Ele apenas se salvou, pois seus irmãos impediram que esse ser o matasse. Mesmo assim, ele ficou com duas cicatrizes: uma cicatriz em seu rosto e a outra em sua alma. A cicatriz em sua alma o converteu em uma pessoa com grande ódio por tsukumogamis e isso começou a atrapalhar seu trabalho, pois ele, racionalmente, decidiu que selaria tsukumogamis antes que eles pudessem fazer mal a alguém. Seu avô, que é o atual líder dos Kunato, não gostando dessa atitude dele, o obriga a passar um ano na casa de Nagatsuki Botan, que vive com seis tsukumogamis como sua família. Se acaso fosse expulso da casa dela, não poderia herdar a liderança da família Kunato. E ele precisa dessa liderança para tentar achar o tsukumogami que matou seus irmãos e se vingar dele.

A série:

A temporada  do início do ano nos trouxe muitas séries de sucesso e inspiradoras. Uma delas, porém, enfrentou um julgamento que considerei injusto, pois sua qualidade, na minha opinião, foi bem acima da média que deram a ela. Ela foi realizada no formato split-cour, com a primeira parte sendo exibida de janeiro a março de 2023 e retornando agora em junho. Totalizará 24 episódios.  Até o último capítulo da primeira parte, a série estava com média, no “My Anime List”, 6.66 (número bem irônico considerando o tema), mas conseguiu fechar com uma média 7.14, o que é uma nota bem razoável. Na minha opinião, poderia ter fechado próximo a 8.0 sem dúvida. Por esse motivo, estou divulgando essa série. Ela foi feita pelos estúdios da Bandai, tendo o selo editorial da Shogagukan-Shueisha. Sendo que a Bandai fez um bom trabalho de animação, bem como a Shogagukan Music fez um grande trabalho com a trilha sonora da série. E o enredo, por si, demonstra uma grande lição, com grandes personagens. Abaixo a primeira abertura da série.

 

Hyouma e Botan são os personagens principais dessa série e são as âncoras para todo o trabalho emocional do roteiro. Acredito que, pelo tema envolver ódio, muitos podem ter acreditado que Hyouma pudesse ser um personagem representante da figura masculina tóxica, entretanto, ele não é. Hyouma é astuto, apesar de ser ingênuo para certos assuntos, dedicado à sua causa, disciplinado, forte e sério ao extremo. Tão sério que isso rende algumas piadas em relação ao olhar dele. Ele tem um ódio profundo e, por conta de sua sinceridade, ele expõe sempre seus sentimentos com muita franqueza. Isso causa já atrito quando ele chega na casa da Botan e já se estranha com os tsukumogamis dela. E é essa sinceridade de coração aberto que o faz ser gentil e protetor quando possível. Ele é uma figura masculina completa, com muitas qualidades e defeitos. Ao tentar enfrentar seu ódio, e até proteger alguns tsukumogamis, vemos que seu esforço em melhorar é verdadeiro e sua disciplina o faz prosseguir contra muitas adversidades. Como ele teve a infância oprimida pela morte de seus irmãos, ele é até inocente para certos assuntos, como namoro. Essa inocência é um ponto bem explorado para momentos de alívio cômico! Muitas vezes ele lembra aquele matuto do interior.

E ele possui um símbolo que ele carrega consigo que é um puxador de porta. Na verdade são dois que pertenceram aos seus irmãos. Na mitologia da série, esses puxadores conseguem abrir e fechar as portas do inferno, por isso, são armas capazes de enviar espíritos de volta ao submundo. E isso me lembrou referências à Bíblia como em Isaías 22:22: “Porei sobre os seus ombros a chave da Casa de Davi: o que ele abrir ninguém terá o poder de fechar e o que ele fechar ninguém será capaz de abrir”. E esses puxadores possuem poder semelhante.  Quem estuda semiótica fica doido procurando por símbolos e esse personagem é repleto deles.  Veja-os abaixo! Se deseja ver mais símbolos, a primeira abertura acima também está repleta deles.

Fonte da imagem: My Anime List (MAL)

Já a Botan é outra personagem com passado sombrio. Sem dar muitos spoilers, ela tem uma “maldição” com ela, que faz com que os tsukumogamis fiquem atraídos por ela. Ela, então, é outra personagem com infância difícil, pois muitos a queriam, tanto humanos, como tsukumogamis, para diversas finalidades nada agradáveis. Ela foi considerada como um monstro pelas pessoas ao seu redor, e isolada. Ela sentia os olhares de ódio voltados para ela e assim ela cresceu, apenas conseguindo superar isso em uma idade mais avançada e, também, por conta de sua família de tsukumogamis, que a protege e sustenta.  Aqui, então, vemos uma pessoa com olhar de ódio (Hyouma) e uma pessoa que sempre sentiu esse olhar nela (Botan).

Esse casal promove duas visões de um mesmo assunto: Hyouma que só vê o mal em tsukumogamis e Botan que vê o bem deles. E as duas visões entram em conflito, fazendo com que os dois comecem a mudar. Botan percebe que nem todos os tsukumogamis são bons, bem como Hyouma começa a perceber que nem todos são ruins. Existe aqui um ponto de equilíbrio, em que nenhum dos lados parece ter vantagem narrativa, mas atraem-se mutuamente a um centro em comum. Ele, portanto, não é tóxico, e ela não é “sojada” (termo usado como gíria para determinar uma pessoa sem força de vontade e muito fraca emocionalmente, que se deixa submeter a uma agenda que não deseja). É uma dupla com o tempero certo e que vai aprofundando um relacionamento interessante, no qual os dois começam a crescer e evoluir.

Os tsukumogamis são outro ponto forte da série. Preciso explicar, primeiro, o que são. São seres folclóricos da cultura japonesa. No começo de seu conceito, os japoneses acreditavam que qualquer animal que pudesse passar dos 100 anos de vida, transformando-se em um yokai, seria um tsukumogami. Com o tempo, essa percepção foi se alterando e o mito foi se moldando de outra forma. Discover Japan resume os tsukumogamis da seguinte maneira: “The Japanese have a belief that objects that are 100 years old take on a life of their own. The tsukumogami (神, literally “divine artifact”) are objects that have a spirit of their own, rather than being possessed objects. They are considered within Japanese folklore as yōkai”. Na série, uma pessoa possuída por um deus se chama receptáculo de um moribito. E isso vai ser importante no enredo!  Anotem essa palavra: moribito!  Então, tsukumogamis são diferentes, por exemplo, de uma boneca “Anabelle” que foi possuída por um espírito, pois eles possuem um espírito próprio.

O tsukumogamis da casa da Botan tem um comportamento interessante, fazendo com que Hyouma os estranhasse de imediato, pois eles comem e bebem, sem ter a real necessidade disso. Eles interagem e brincam com as pessoas de maneira normal, ou seja, são pessoas amáveis e com temperamentos bem distintos. E isso deixa o Hyouma desconfiado de que eles estivessem enganando as pessoas.  A minha preferida é a Kagami (espelho), que se mostra muito franca e com atitudes bem engraçadas. Ela tem um lado sapeca que é adorável. Ela foi a primeira a notar, em primeira mão, uma tentativa de mudança do Hyouma. E foi a primeira a aceitá-lo.

Como salientei acima, eles possuem comportamentos e temperamentos distintos, então, nem todos os tsukumogamis tratam o Hyouma bem, pois veem nele o ódio que ele carrega. Mesmo assim, todos eles começam a aceitar o futuro regente da família Kunato por conta do esforço dele em mudar e por conta do carinho que eles sentem pela Botan e, claro, pela finalidade pelo qual eles foram criados. Essa parte da finalidade deles me fez chorar de rir. Não esperava por aquilo! Eles são tsukumogamis com uma finalidade, digamos, ao estilo “cupido”.

Já os personagens secundários dão um tempero especial a essa série. Cito a Tsubaki, filha de Kadomori Taiju, que é chefe da família Kadomori. Eles são os “policiais” que controlam a atividade dos tsukumogamis na região onde vivem Botam e seus familiares. Por conta da situação especial da Botan, Taiju tem uma vigilância especial voltada para ela e, claro, interesse em controlar a jovem universitária. Tsubaki, por sua vez, tem interesse no Hyouma por conta de seu passado e ela é uma personagem única. Ela tem um grande poder, mas não deixa que isso tire a feminilidade dela. Ela consegue, ao mesmo tempo, destruir um tsukumogami e ser adorável. Apesar da série animada a mostrar mais séria, no mangá ela é mais divertida.

Tsubaki trabalhando. Volume III.

E, por fim, voltando a escrever sobre a Botan. Provavelmente, ela é a personagem que mais tem sua “zona de conforto” remexida. Diferente do Hyouma, que já chegou sabendo o que tinha que fazer, Botan vai percebendo que todos se aproximam dela com um interesse qualquer. Sejam humanos ou tsukumogamis, todos querem um pouco do poder dela. E isso vai fazendo com que ela se torne fria, fique com medo de se abrir e se mostrar como ela de fato é. E aqui é que nasce o relacionamento deles (Hyouma e Botan). O jeito sério do Hyouma, com seu comportamento, digamos, matuto, e sua sinceridade, vão quebrando as camadas de defesa psicológica que a Botan colocou ao seu redor, para impedir que ela se machucasse e se decepcionasse com outras pessoas. Assim, ela também vai crescendo no relacionamento deles.

Conclusão:

A série tem muita profundidade. Ela não trata de sentimentos como o ódio de forma superficial e leviana. As interações de todos os personagens são interessantes e eles vão ganhando camadas de elementos psicológicos, que fazem com que  todos se tornem tridimensionais. Tem muita comédia, apesar do tema, e muita ação moral, o que faz com que eu dê um ponto a mais para a série. Moral é algo que nunca se deve perder de vista.  A cultura dos tsukumogamis é impressionante e eu adoro essa percepção espiritual única. A série é um shonen/seinen (voltado a um público adulto), então, ela tem ação e é bem realizada. O estúdio entrega cenas ótimas de luta e com uma mistura excelente de música e emoção. Está abaixo do trabalho de um estúdio como o Ufotable, mas entrega um material consistente.

A canção tema, que deixo abaixo, foi até um fator de alavancagem do grupo que a cantou (Arcana Project), sendo um grande sucesso considerando outras projeções do grupo e visualizações conseguidas com seus vídeos. A série é excelente e deveria ter sido assistida por mais pessoas, por isso, eu a deixo como indicação. E vejam rápido a primeira temporada, pois a segunda parte da série estreou em julho desse ano!

 

Sobre a obra:

Mononogatari é um mangá desenhado e escrito por Onigunsou para a editora Shueisha, tendo distribuição em inglês pela editora Seven Seas. Na Shueisha, ele começou na revista Miracle Jump, sendo transferido, posteriormente, para a Ultra Jump. Possui atualmente 15 volumes encadernados e eu já tenho três. O animê (desenho japonês) tem direção de Ryuichi Kimura, com roteiro de Keiichirō Ōchi e música de John Kanda e XELIK.

Texto originalmente publicado no blog do autor (Outros Papos), com alterações para o site Se Liga Nerd. Por Patrick Raymundo de Moraes que é comunicador social. Tentou muita coisa antes de se formar. Tentou Administração (4 semestres), Direito (4 semestres), Medicina Veterinária (4 semestres) e Teologia (3 meses). Acabou se tornando jornalista, blogueiro e apaixonado por animês e mangás.

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