Existe algo profundamente melancólico em assistir fãs pausando filmes quadro a quadro, procurando easter eggs como arqueólogos digitais escavando ruínas de uma civilização perdida.
É exatamente isso que está acontecendo com o novo Superman de James Gunn. Mal chegou ao streaming e já virou objeto de dissecação obsessiva. “Olhem! Uma manchete de jornal! Mali será lembrado!” Celebram os devotos, como se tivessem descoberto os Manuscritos do Mar Morto em alta definição.
Mali. O vendedor de falafel que morreu para dar “profundidade emocional” ao roteiro. Um personagem tão memorável que precisaram colocar uma manchete de jornal para lembrar que ele existiu. É o equivalente cinematográfico de colocar uma plaquinha “aqui jaz relevância narrativa” em um cemitério de ideias mal executadas.
Mas o que realmente impressiona é o malabarismo retórico dos envolvidos. Clark Kent escreve sobre Mali. Superman conversa com Lois. Kara aparece no final. Os robôs leem jornais. É Dostoiévski? Não. É um algoritmo de roteiro tentando parecer profundo enquanto marca todas as caixinhas do manual “Como Fazer Cinema Significativo em 2025”.
Enquanto isso, na realidade paralela onde vivem os executivos de Hollywood, celebra-se cada frame como uma obra-prima. “Veja como somos sensíveis! Homenageamos o imigrante vendedor de comida étnica!” É o tipo de virtude performática que faria Brecht vomitar sobre suas anotações do teatro épico.
O fenômeno é sintomático de algo maior. Quando um filme precisa ser dissecado pixel por pixel para que suas “camadas” sejam apreciadas, não estamos falando de complexidade narrativa. Estamos falando de fracasso comunicacional disfarçado de sofisticação.
Lembram quando filmes contavam histórias que não precisavam de manual de instruções? Quando Superman salvava o dia sem precisar de dissertações sobre teoria crítica racial embutidas em placas de rua desfocadas?
O Mali morreu duas vezes: uma na tela, outra na memória do público que saiu do cinema sem lembrar quem diabos ele era. Agora ressuscitam seu cadáver narrativo como prova de que o filme tem “coração”. É necromancia cinematográfica da pior espécie.
O mais revelador é o processo: fãs transformados em detetives digitais, procurando migalhas de significado em um banquete de mediocridade. É o Stockholm cinematográfico perfeito — o refém defendendo o sequestrador, encontrando beleza onde só existe cálculo mercadológico travestido de arte.
“Mas veja, Clark escreveu o artigo! Isso mostra crescimento do personagem!” Não, queridos. Isso mostra que alguém na sala de roteiristas disse: “Precisamos amarrar essa ponta solta do vendedor de falafel que matamos no segundo ato.”
E assim caminha a indústria. Cada filme vira um quebra-cabeça de referências meta-textuais, cada cena uma oportunidade para semiótica barata, cada personagem secundário um mártir em potencial para a causa da “representatividade”.
O Superman de Gunn não é um filme. É uma tese de doutorado em Estudos Culturais disfarçada de blockbuster. E os fãs, coitados, viraram os orientadores não remunerados, procurando profundidade onde só existe pretensão.
Enquanto vasculham pixels em busca de significado, Hollywood ri — não do público, mas com ele. Afinal, transformaram consumidores em evangelistas de sua própria exploração intelectual.
No final, Mali teve sua homenagem. Uma manchete ilegível em um jornal fictício lido por um robô em uma fortaleza imaginária. Se isso não é a metáfora perfeita para o estado atual do cinema blockbuster, não sei o que é.
Preparem os microscópios digitais. O próximo filme do Batman deve ter pelo menos três camadas de subtexto escondidas em grafites borrados. É o novo normal: cinema que exige CSI para ser compreendido.
Que Eisenstein nos perdoe pelo que fizemos com a montagem.