Como o épico O Resgate do Soldado Ryan foi derrotado pela Disney
Me deixe te levar por alguns minutos para a fronteira entre os anos de 1998 e 1999. Como escreveu George Lucas na abertura de Star Wars: “em uma galáxia muito, muito distante” – ou melhor – em um mundo bastante diferente do atual, quando os filmes concorrentes ao Oscar ainda traziam consigo aquele glamour da Era de Ouro de Hollywood.
Mesmo assim – acredite – muita coisa estranha rolou pelos bastidores da Academia de Ciências e Artes Cinematográficas naquele final do milênio…
Mas antes de nos deliciarmos com o prato principal, vale dar uma espiadinha no que acontecia naquele período. O presidente do Brasil era Fernando Henrique Cardoso. O dos EUA, era o democrata Bill Clinton – um dos últimos “moderados” do partido.
No final de 1998, U$ 1 era comprado por R$ 1,20, e o preço de uma entrada para ver filmes no Cinemark (que acabara de chegar ao Brasil) era em torno de R$ 12-R$ 15.
Introdução feita, está na hora de entender o que aconteceu de realmente bizarro na 71ª edição do Oscar. Esta será nossa missão nos episódios a seguir…
Oscar 1999 – quando até a imprensa “cheirosa” xiou
Hollywood sempre gostou de filmes de guerra. Principalmente, os sobre a Segunda Guerra Mundial. Com essa premissa, quase ninguém duvidava que O Resgate do Soldado Ryan seria a grande barbada do Oscar 1999. Aparentemente, não havia rival para o longa dirigido por Steven Spielberg naquele ano, em termos de impacto cultural e qualidade de produção.
A produção, a propósito, recebeu 11 indicações da Academia, incluindo Melhor Filme e Melhor Direção. Só que, como diria Carlos Drummond de Andrade: no meio do caminho de Ryan havia um tal de Shakespeare Apaixonado.
Sim, O longa romântico da Miramax já entrou na festa com nada menos que 12 indicações para o Oscar, ainda que seu roteiro e dimensões sequer se aproximaram do drama conduzido com maestria por St
Contudo, no Dia D, aconteceu o que no futebol costuma se chamar como zebra. Depois que Spielberg recebeu a estatueta de Melhor Diretor das mãos de Kevin Costner no Dorothy Chandler Pavilion, em Los Angeles, aconteceu o que mais se temia.
Em vez de Ryan, deu mesmo Shakespeare Apaixonado, estrelado por Gwyneth Paltrow e Joseph Fiennes – e com produção de um homem que se transformaria em um dos maiores vilões de Hollywood: Harvey Weinstein. Mais sobre ele depois.
Folha de S. Paulo: “Oscar do Dinheiro” causa polêmica
Em anos recentes, não seria nada estranho a imprensa e seus críticos adeptos à agenda woke escreverem maravilhas sobre como a vitória de um filme de menor porte foi capaz de sobrepujar uma potência como O Resgate do Soldado Ryan – talvez o melhor retrato de uma batalha da Segunda Guerra já feito em Hollywood.
(Atenção especial para os 24 minutos de duração da cena que descreve a chegada dos Aliados à Normandia. Até hoje, poucos conseguiram chegar perto da maestria de Spielberg).
No ano de 1999, entretanto, a militância era menos comum, embora já existente. Dito isso, o desempenho de Shakespeare Apaixonado na festa maior do cinema mundial foi bastante criticado por jornais do mainstream, como a Folha de S. Paulo.
Confira parte do trecho da matéria publicada pelo periódico em 23 de março de 1999:
“Os estúdios Miramax ganharam 10 dos 20 Oscar a que seus dois filmes, “Shakespeare Apaixonado” e “A Vida É Bela”, concorriam, entre eles as de filme e atriz (para “Shakespeare” e Gwyneth Paltrow) e ator (para Roberto Benigni).
O fato de o concorrente direto O Resgate do Soldado Ryan, do poderoso Steven Spielberg, ter levado apenas um importante (diretor) e de atuações consideradas fracas, como as de Paltrow, Benigni e do próprio “Shakespeare Apaixonado”, terem sido premiadas, ressuscitou a polêmica sobre quão éticos teriam sido os irmãos Harvey e Robert Weinstein, da Miramax, em sua campanha pelo Oscar.
Para tentar ganhar os votos dos 5.557 membros votantes da Academia, a Miramax começou uma verdadeira guerra publicitária, investindo US$ 15 milhões. Jeffrey Katzenberg, sócio de Spielberg no DreamWorks, resolveu responder à altura. Voaram farpas e milhões” (…)
Central do Brasil e as coincidências com o Oscar 2025
Não foi apenas O Resgate do Soldado Ryan que sofreu com a investida da Miramax – empresa responsável pelo “sucesso no Oscar” de Shakespeare Apaixonado.
A produtora – famosa por seu sucesso como independente até ser adquirida pela Disney em 1993 – também estava por trás da distribuição de A Vida É Bela – longa italiano que faturou o Oscar de Melhor Filme em Língua Estrangeira em 1999, derrotando ninguém menos que Central do Brasil, de Walter Salles – o mesmo diretor de Ainda Estou Aqui.
A derrota, por sinal, acabou tendo um gosto ainda mais amargo para Salles e cia. quando Jack Nicholson tirou do envelope o resultado do prêmio de Melhor Atriz. Em vez de Fernanda Montenegro, quem levou para casa a estatueta do Oscar foi Gwyneth Paltrow, tirando de uma vez os doces das bocas dos brasileiros.
Em mais uma dessas coincidências do mundo pop, Salles está de volta ao Oscar em 2025, acompanhado desta vez por Fernanda Torres, filha da atriz que perdeu a estatueta há 26 anos.
Sobre as derrotas de Central do Brasil, a Folha destacou
“Para Arthur Cohn, que participa, entre outros, da produção de “Central do Brasil” -que perdeu ontem o Oscar de melhor filme estrangeiro para “A Vida É Bela” e o de melhor atriz (Fernanda Montenegro) para “Shakespeare”-, o resultado é “decepcionante”.
“Temos aí uma prova de que os milhões de dólares investidos pela Miramax fizeram de “A Vida É Bela” um enorme sucesso comercial. E, infelizmente, o dinheiro, mais uma vez, acabou influenciando no resultado da noite passada”, disse.
Cohn afirmou não acreditar em mudanças nas regras: “Acho que, por mais poder que uma pessoa tenha, ninguém vai mudar o sistema. O meu medo maior é a possibilidade de esse tipo de jogo incentivar no futuro outros filmes indicados ao Oscar a se tornar obras comerciais, em vez de obras de arte”.
Para não terminar essa história quebrando uma promessa, vamos resumir o caso Weinstein sem mergulhar nos sórdidos detalhes hollywoodianos.
O ex-produtor, hoje em uma prisão do estado de Nova York, deu origem ao movimento Me Too, que reuniu uma infinidade de atrizes que o acusaram de abuso sexual. Entre elas, as mais famosas são Cate Blanchett, Kate Beckinsale, Rosanna Arquette, Angelina Jolie, Salma Hayek, Ashley Judd – e até a inocente Madonna, totalizando cerca de 107 depoimentos.
Cortando essa fita para uma duração mais comercial, podemos concluir que o Oscar de Melhor Filme conquistado por Shakespeare Apaixonado ficará marcado para sempre como um divisor de águas da hoje lacradora Academia e seus integrantes.